A novela que prometia repetir o êxito de A Força do Querer (2017) em inovar e quebrar tabus, só se mostrou ser a pior novela de Gloria Perez
Na última sexta-feira (5), a Globo exibiu finalmente o último capítulo de ‘Travessia’, de Gloria Perez, que ao longo dos seus sete meses de exibição acumulou uma passagem bem problemática pelo horário nobre da emissora por uma série de questões que não foram perdoadas pelo público.
Desde que as primeiras notícias de que a então próxima novela das nove abordaria a tecnologia como um dos principais temas — trazendo o que a autora sabe fazer muito bem — o público até se animou, mas se frustrou durante a travessia que a novela fez. A trama se perdeu pelo caminho, sofreu alterações visando aumentar os índices de audiência e evidenciou alguns problemas de bastidores que aconteceram nesse meio tempo.
Com uma história desinteressante, ainda assim a novela se sustentou em contar com a torcida de casais queridos pela audiência nas redes sociais e claro, com os milhares de memes feitos para o bem e para o mal, infelizmente —, mas não dá para se apoiar somente nisso.
Tecnologia inimiga do folhetim
A tecnologia sempre foi um assunto interessante, ainda mais se abordado em uma telenovela de grande alcance, uma vez que é uma grande oportunidade de atingir à massa populacional com um tema novo, como parecia a proposta da novela em abordar o impacto da tecnologia na humanidade e também a dependência digital – ambos oscilaram bastante ao longo dos 179 capítulos da trama.
Sua trama principal, protagonizada por Brisa (Lucy Alves), se esgotou no primeiro mês, isso é fato. A mocinha acaba sendo vítima de uma notícia falsa de que é uma sequestradora de crianças feita via uma deep fake e desde então começa seu martírio resolvido apenas nas últimas semanas da trama e de maneira bem superficial, inclusive.
Embora parecesse promissora, não houve como torcer pela mocinha, mesmo que não concordássemos com seu sofrimento injusto após o fato ter sido abordado com uma “brincadeira” de um adolescente.
Ainda na trama, o metaverso apareceu por diversas vezes no texto, mas sem o didatismo necessário para explicar o que era e para que veio e terminou a história sem ser desenvolvida. Também foi inserido um robô chamado Haroldo para falar que as máquinas estão substituindo os humanos, mas ainda assim tudo de forma muito gratuita e tratada com mais humor.
Certamente o que mais funcionou dentro dessa proposta foi a dependência digital abordada por Theo (Ricardo Silva), entregando sequências impactantes e de alto, bem como a pedofilia digital através da realidade virtual sofrida por Karina (Danielle Olímpia), que agitou os últimos meses da trama.
Se considerarmos que a abordagem do tema da tecnologia feita anteriormente em novelas como ‘Tempos Modernos’ (2010) e Geração Brasil (2014), é de se considerar que a direção não aprove mais nenhuma sinopse com o mesmo teor, visto que essas novelas não dão muito certo.
Quem era a protagonista da história?
Já nos primeiros capítulos, o público se perguntava quem era realmente a protagonista da história. Por muitas vezes, Chiara (Jade Picon) foi considerada protagonista moral da novela, de modo que apareceu e se destacou bem mais do que Brisa (Lucy Alves).
Brisa, por sua vez, não apresentou o mesmo êxito que as outras protagonistas da autora, conhecidas por serem fortes e determinadas. Sofreu o abandono de Ari (Chay Suede), a sua trajetória como criminosa injustamente, a separação do filho Tonho (Vicente Alvite) e por fim o quimerismo — condição rara que a fez ter dois DNAs e ainda não ser considerada a mãe do próprio filho.
Sua história se sustentou em muito sofrimento, escolhas erradas e principalmente no seu amor por Oto (Romulo Estrela), que ganhou inúmeros fãs nas redes sociais ao apelidarem o casal de “Brisoto”.
É difícil dizer, mas Brisa foi uma protagonista ruim em uma história desinteressante. Infelizmente, Lucy Alves, em sua primeira protagonista na Globo, não deu certo. Com um histórico de sucesso em novelas como ‘Velho Chico’ (2016), ‘Tempo de Amar’ (2017) e ‘Amor de Mãe’, ela merecia bem mais porque é talentosa.
O sucesso de Chiara
Falando em Chiara (Jade Picon), esse foi um dos pontos que mais causou polêmica. Desde que ela foi anunciada como uma das principais personagens de Travessia, logo após o final do BBB 22, a escalação dividiu a opinião do público e profissionais do meio. Ela nunca foi atriz e nem havia atuado antes, assim sofreu a inquisição de todos.
Para conseguir atuar na novela, ela contou com uma autorização especial do SATED — RJ (Sindicato dos Artistas e Técnicos do Rio de Janeiro) mesmo contra grandes nomes da televisão e deu certo. Estreou sendo detonada pela crítica especializada, do sofá e da internet, porém, não deitou para eles. Ela foi muito defendida por Gloria Perez e Mauro Mendonça Filho, diretor artístico da trama.
Sua atuação ficou marcada por caras e bocas inexpressivas, sotaque carioca forçado e claro, o texto infanto-juvenil tirado das redes sociais, considerado até mesmo incompreendido cm o seu “você não vai flopar minha história”.
A cena se tornou viral nas redes sociais para o bem e para o mal, bem como a música que era seu tema, “Dengo”, cantada por Maria Maud e João Gomes. Afinal, quem não se lembra do “fuen fuen” que a canção tanto tocou na trama.
Quanto a evolução de Jade Picon como atriz, há de se reconhecer que seu desempenho evoluiu bastante, porém ainda está longe de ser ideal para uma personagem e destaque de novela das nove.
Por fim, a Globo não tem do que reclamar, afinal, com toda essa polêmica, viu o seu nome e o nome da novela sempre em alta nas pesquisas e assuntos mais comentados na internet. Surfou na onda de engajamento já conhecida pela influenciadora em suas redes sociais.
Merchandising social em alta
Assim como em outras novelas, Gloria Perez não abriu mão de abordar algumas pautas de importância social, algo que é uma das suas marcas registradas. A maioria delas foi atrelada à proposta em falar da tecnologia e colocou o dedo na ferida de questões atuais como os novos perigos que a internet oferece na atualidade.
Dentro desse contexto, a autora tentou falar de deep fake, notícias falsas, os atualíssimos golpes em aplicativos de relacionamento, e, por fim, a pedofilia digital feita através da inteligência artificial – que conquistou o título de melhor abordada e um grande destaque que só apareceu na reta final.
Dado isso, a autora não parou por aí. Investiu também em falar da assexualidade através de Rudá (Guilherme Cabral), que penou para conseguir explicar a sua orientação sexual à família, e Caíque (Thiago Fragoso), que sofria com seus relacionamentos malsucedidos pela falta de compreensão das mulheres que se envolveu.
Essa trama que prometeu e não entregou nada, nem ao menos um final digno ao personagem, que foi resolvido às pressas ao encontrar uma mulher na mesma condição que ele. Era um tema interessante, porém não foi desenvolvido com seriedade para levantar debate na sociedade como em outras ocasiões.
Ainda vale lembrar que, uma abordarem equivocada de violência doméstica também apareceu. Na ocasião, Guida (Alessandra Negrini) fingia ser agredida por Moretti (Rodrigo Lombardi) para prejudicá-lo. Essa, certamente, pegou bem mal.
Helô e Stenio em uma realidade paralela
Um dos melhores — e poucos — destaques do folhetim foi o inusitado retorno de Helô (Giovanna Antonelli), Stenio (Alexandre Nero) e Creusa (Luci Pereira), os personagens mais carismáticos de Salve Jorge (2012), que foram responsáveis por justamente oxigenar o carisma em falta em Travessia.
Eles retornaram agora dez anos depois, em outras fases de suas vidas e que, de certa forma, causaram um certo estranhamento. Isso porque eram os mesmos personagens agora em outra realidade, porém, ao mesmo tempo, eram novos perfis, uma vez que a trama deles não sou somada integralmente à novela.
Foi então percebida a realidade paralela do casal, que, na novela anterior, tinham uma filha, Drika (Mariana Rios), que foi completamente esquecida durante os sete meses de história. A narrativa simplesmente não fez nenhuma menção textual, referencial, nada. O casal, então, já era para ser até mesmo avós de uma criança de dez anos e nada.
Ainda que o público questionasse e cobrasse a autora, a participação da filha foi dada como descartada porque sua intérprete está envolvida em mais um projeto de reality show na concorrência. Há quem discorde sobre a falta da personagem na trama ou não, porém, é inegável que ao menos uma menção deveria ter sido feita.
Helô e Stenio, embora seja um prazer tê-los em cena, foram apenas uma forma de trazer popularidade ao folhetim em apostar no retorno de um dos casais mais queridos pela audiência na última década, mas era só isso. Por isso, até mesmo a trilha sonora deles foi resgatada a pedido dos fãs, evidenciando que o retorno serviu apenas para agradar o determinado público da fã base do casal. Não foi feita uma boa amarração deles à trama que entraram quase que de penetra. Não convenceu.
Os mesmos erros de sempre
Travessia pecou pela demora em resolver as suas tramas, o que a fez ser, além de todos os adjetivos já citados no texto, uma novela cansativa e com uma barriga enorme que tirou a paciência de quem assistiu.
Brisa foi a que mais sofreu nessa, onde só foi inocentada e conseguiu resolver o imbróglio sobre a sua maternidade nos últimos capítulos, e ainda totalmente anticlímax e sem nenhuma grande catarse, infelizmente.
O mesmo aconteceu com a verdade sobre o passado de Chiara, o qual foi o grande destaque do penúltimo capítulo ao descobrir ser filha de Débora (Grazi Massafera) e não de outra mulher inventada por Guerra (Humberto Martins). Entretanto, ela descobriu meia verdade, já que o detalhe dela ser filha biológica de Moreti sequer foi mencionado. Também, não fez falta.
Diante de tudo isso abordado no texto, Gloria Perez repetiu outra característica sua na reta final da novela: deixar tudo para última hora. Assim, muitas tramas foram resolvidas às pressas e superficialmente.
Adeus, Travessia!
Chegando às conclusões finais, conclui-se que Travessia foi uma novela irregular e desinteressante onde, embora tenha lá seus pontos positivos, eles não conseguiram se sobressair e ela será lembrada para sempre apenas pelos sua reputação negativa que foi muito maior.
Foi uma pena ver tanta gente boa em personagens raros, sem desenvolvimento coerente e subaproveitados na história, como Vanessa Giácomo, Thiago Fragoso, Bel Kutner, Dandara Mariana, entre outros, por exemplo. Em contrapartida, o desempenho de Indira Nascimento, Cassia Kis, Grazi Massafera. Chay Suede, Lucy Alves e Drica Moraes merece ser reconhecido.
Ainda assim, há de se reconhecer que o retorno de nomes afastados da emissora ou das telinhas, como Maria Ceiça, Vera Zimmermann, Sura Berditchevsky, Cláudia Mauro, Denise Milfont, Talita Castro, Gero Camilo e Cláudio Tovar foi uma grata surpresa e a produção de elenco merece seu devido reconhecimento.
Foi evidente também que a direção de Mauro Mendonça Filho não casou com a proposta da novela, ainda mais nos últimos capítulos, quando o possível desentendimento entre ambas as partes foi exposto publicamente pela autora quando uma cena foi improvisada e ela jogou a responsabilidade nas costas do seu diretor.
Com isso, espera-se que Gloria Perez aprenda com seus erros cometidos durante o processo de desenvolvimento da novela e não os repita em uma possível próxima novela, afinal, ela é uma boa autora e precisa ser mais flexível quanto às críticas e a reação da audiência para com a sua obra.